"Produzir sujeitos coletivos
É uma inteligência que nos aprendemos com a terra

Sou cidadã de um país que elegeu um governo que está programaticamente desmontando a nossa democracia. Lidamos portanto, diariamente, com essa situação escabrosa e todos os problemas derivados. Sociais, políticos, econômicos, ecológicos, clínicos, estéticos, espirituais, existenciais.

Pensar juntas sobre modos de ação, bem aqui neste agora.

Precisamos brevissimamente pensar em termos locais e globais articuladamente. Não dá pra escapar nesse momento. E daí então refletir sobre ações artísticas aqui e agora. Refletir sobre as ações artísticas e a sua capacidade de gerar espaço e de gerar tempo.

Pois bem, o capitalismo avançou e passou de todos os limites. Sua esganação neoliberal global é irrefreável, insaciável, devastadora, saguinaria, daninha, criminosa, doente, demente, escrota, ruim.
E a notícia é: a versão liberal do capitalismo mais que avançado do qual participamos todas, voluntaria ou involuntariamente não precisa da democracia para nada. Aliás, muito pelo contrário. Precisa da anti democracia, da não-interferência do estado e do povo que o elegeu. Mantém o estado, isso sim, como um aparato militar e policial pra controle das ações e dominação das forças que escapem à lógica do capital.
A doutrina neoliberal, como sabemos, se funda i) na redução dos gastos sociais;ii) na promoção da livre concorrência sem qualquer preocupação com reparações históricas ou sócio-estruturais; iii) no fortalecimento das das mega, mega, m-m-mega corporações. Mega corporações; iv) na desintegração dos sindicatos.
O neoliberalismo como prática cotidiana se baseia no acachapar das diferenças, no consumo despudorado dos recursos naturais, no mais profundo desinteresse pela experimentação existencial. O desinteresse pela experimentação existencial. E o investimento por um modo de subjetivação que associa individualismo e propriedade privada com liberdade e emancipação. Essa é boa, não é? É ótimo… um modo de subjetivação que associa individualismo e propriedade privada com liberdade e emancipação.

Assim sendo, nesse aqui, nesse agora, chegamos ao um momento de dobra em que regimes ditos democráticos elegem sim anti-democracias. Claro, com todas as particularidades de cada cultura e lugar, com todas as especificidades sócio-históricas, geopolíticas, performativas, religiosas, mágicas, de cada cultura, de cada lugar.
Tudo isso nós já sabemos, eu já sei, mas é preciso colocar aqui pra pensarmos juntas nos comos e por ques de ações artísticas hoje nessa nossa democracia em vertigem, nesse nosso Brasil separatista e segregado.

Recentemente, eu estive na plateia de uma conferência do filósofo camaronês Achille Mbembe, chamava-se: o mundo sem fronteiras?
Segundo Mbembe, e tomo a liberdade de pensar seu pensamento com meu vocabulário, a partir das anotações que fiz: o projeto energético do neoliberalismo é transformar a vida em mercadoria. Trata-se da transformação de pessoas, de relações, em última instância da vida mesmo em mercadoria. Como sempre, replicando a lógica colonial por meio de novas estratégias escravagistas. Dizia que estamos condenadas, condenados, condenades, ao cálculo, à contagem, a computabilização
Dizia que o movimento neoliberal pretende racionalizar o mundo a partir de lógicas empresariais. Lógicas empresariais.
Que a razão algorítmica nos transformou em padrões codificados, que conhecimento foi confundido com informação. Então, se perguntava: “O que resta do ser humano?” E acrescentava: “É preciso reimaginar a política planetária.”
Disse que era preciso reinventar o mundo. Que o planeta está sendo destruído pela nossa crença no capitalismo. Na religião capitalista. E então se perguntou: “Será possível imaginarmos outro tipo de democracia? Outro tipo de democracia? Falou também sobre a inexistência de refúgio, sobre uma espécie de desproteção. Então convocou: “Quando um refugiado bate a sua porta, você tem a obrigação de atende-lo.”
Hospitalidade e solidariedade são pois questões e ações de base. Mbembe imaginava um mundo sem fronteiras e dizia: “O planeta é o teto que compartilhamos. É o nosso refúgio comum”
E enfatizou: “As ideologias da diferença foram longe demais. Devemos voltar a tratar da questão do comum. Do em comum” .

Um par de meses depois, pesquisando o trabalho da filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva, diretora e professora do Institute for Gender, Race, Sexuality and Social Justice da University of British Columbia, li um artigo intitulado: Diferença sem separabilidade. Nesse texto a autora argumenta que as bases metodológicas e ontológicas do sujeito moderno são a temporalidade linear e a separação espacial. A linearidade e a separação espacial. Sua resposta é reimaginar socialização. Reimaginar socialização. Imaginar formas de sociabilidade baseadas em um entendimento de diferença, que não seja calcado nas noções de separabilidade, determinabilidade e sequencialidade. Os 3 pilares ontológicos que sustentam o pensamento moderno. Ou seja, o entendimento de sociabilidade, de diferença, que se abre, quando paramos de reproduzir mecânicas separatistas, deterministas e sequenciais. Fato é que muitas, muitos, muites de nós herdamos uma visão de matéria baseada em solidez de tempo calcada em sequencialidade progressiva de espaço marcada por separação, de sentido fechada em definição, de acontecimento fundamentada em causalidade. Seguindo a mesma lógica a gramática racial, ela diz, é predominantemente separatista. Vivemos cotidianamente uma separação fundamental baseada em etnicidade, nacionalidade e identidade social. Em contrapartida, Ferreira da Silva sugere que: “Uma configuração do mundo alimentada pela imaginação nos inspiraria a repensar a socialização sem as abstrações produzidas por esse entendimento separatista e a violência que elas autorizam contra os outros culturais - os não brancos, não europeus - e os outros físicos - o que ela inteligentemente chama de mais-que-humanos.
Ou seja, uma configuração do mundo não apenas contra o racismo mas ativamente antiracista, como sugere Angela Davis. Racismos que combinam interseccionalmente referentes como gênero, sexualidade, credo, classe, idade, etnia, cultura, habilidades diferenciadas, neurodiversidades. Racismo, ou seja, ações de diferenciação separatista e no extremo de aniquilamento. O oposto da vivência das diferenças em emaranhamento.
O oposto da vivência das diferenças em emaranhamento.
E se… conseguíssemos desmontar a máquina racista e cito (Denise): “imaginássemos cada existente, cada existente humano e mais-que-humano constituído não de formas separadas, associadas pela mediação de forças, mas como expressão singular de cada um dos outros existentes e também do todo emaranhado em que elas existem”
É uma movida…
“E se pudéssemos viver em estado de emaranhamento elementar, aprendendo com a terra, como diz Krenak. Estado de emaranhamento elementar em tempos declaradamente separatistas. Momento de desmonte da democracia brasileira. Desmanche esse engordado por um regime estrategicamente segregacionista.
Claro, um regime, não apenas um governo, que dissemina e instiga preconceitos múltiplos pra garantir o caos necessário, pra gerar o ódio combustível e disseminar o medo que viabiliza manipulações de toda sorte.
1 + 1 = 5
Cito novamente Denise Ferreira da Silva, atenção, aí é que vem a paulada: “O que está em jogo aqui - do que precisaremos abrir mão para liberar a radical capacidade criativa da imaginação e dela obtermos o que for necessário pra tarefa de pensar o mundo de outra maneira? Nada menos que uma mudança radical no modo como abordamos matéria e forma. O desafio é mesmo imenso. Trata-se de uma necessidade de uma mudança radical no modo como abordamos matéria e forma pra vivermos a vida de outra maneira. Simples assim, complexo desse jeito e pergunto: seria a própria inseparabilidade na diferença co-implicação, co-consitutiva e intra-ativa de diferentes a matéria e a forma as quais Denise Ferreira da Silva se refere?
Pergunto: não seriam as artes da cena referentes fundamentais nessa busca? pergunto. Referentes fundamentais na medida em que tratam da lida objetiva e subjetiva com matérias, formas e suas relações coimplicadas e intra-ativas ao infinito, na medida em que tratam justamente do agenciamento de matérias e formas humanas e mais-que-humanas, não apenas como um laboratório, mas como um modo de ação no mundo? E de criação de mundo, conjugando imaginação e ação de maneira inextrincável. E pergunto: como e quais cenas poderiam nos guiar rumo às práticas da diferença sem separabilidade. E ao revés: que modos de sociabilidade poderiam gerar tais cenas?