ESTUDOS SOBRE CORPO
"Mas já agora podemos falar do corpo como de um limite movente entre o futuro e o passado, como de uma extremidade móvel que nosso passado estenderia a todo momento em nosso futuro. Enquanto meu corpo, considerado num instante único, é apenas um condutor interposto entre objets que o influenciam e os objetos sobre as quais age, recolocado no tempo que flui, ele está sempre situado no ponto preciso onde meu coração passado vem expirar numa ação."
(BERGSON, 1999, p. 84 - 85)
"O que entender aqui pela palavra "corpo"? Despojado como ele está em minha frase, parece escapar, por demasiado puro e abstrato, ideal, como o ego transcendental de Hursserl! No entanto, é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro. Eu me esforço, menos para apreendê-lo do que para escutá-lo, no nível do texto, da percepção cotidiana, ao som do seus apetites, de suas penas e alegrias: contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos, sensações de vazio, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou sua queda, o sentimento de uma ameaça ou, ao contrário, de segurança íntima, abertura ou dobra afetiva, opacidade ou transparência, alegria ou pena provindas de uma difusa representação de si próprio.
"Espinosa propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo. Propõe-lhe instituir o corpo como modelo: "não sabemos o que pode o corpo...". Esta declaração de ignorância é uma provocação: falamos da consciência e de seus decretos, da vontade e de seus efeitos, dos mil meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixões - mas [i] nós nem sequer sabemos do que é capaz um corpo. [/i]

Segundo a Ética, o que é ação na alma é também necessariamente ação no corpo, o que é paixão no corpo é por sua vez necessariamente paixão na alma.


É pois, por um único e mesmo movimento que chegaremos, se for possível, a captar a potência do corpo para além das condições dadas do nosso conhecimento das potências do corpo para descobrir paralelamente as potências do espírito que escapam a consciência, e poder compará-los.


Quando um corpo "encontra" outro corpo, uma ideia, outra ideia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão de suas partes.
Capítulo VI - Espinosa e nós (p. 128)
DELEUZE, G. Espinosa Filosofia prática

Como Espinosa define um corpo? Um corpo qualquer, Espinosa o define de duas maneiras simultâneas. De um lado, um corpo, por menor que seja, sempre comporta uma infinidade de partículas: são as relações de repouso e movimento, de velocidades e de lentidões entre partículas que definem um corpo, a individualidade de um corpo. De um outro lado, um corpo afeta outros corpos ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que também define um corpo na sua individualidade.

São duas proposições muito simples: uma cinética, a outra dinâmica.

Com efeito, a proposição cinética nos diz que um corpo se define por relações de movimento e de repouso, de lentidão e de velocidade entre partículas. Isto é: ele não se define por uma forma ou funções. A forma global, a forma específica, as funções orgânicas dependerão das relações de velocidade e de lentidão. Até mesmo o desenvolvimento de uma forma, o fluxo do desenvolvimento de uma forma depende dessas relações, e não o inverso. (...) é pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa: a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos.

A segunda proposição referente aos corpos nos remete ao poder de afetar e de ser afetado. Não se define um corpo (ou uma alma) por sua forma, nem por seus órgãos ou funções: tampouco se define um corpo como uma substância ou um sujeito. Cada leitor de Espinosa sabe que os corpos e as almas não são para ele nem substâncias nem sujeitos, mas modos.

Vê-se que o plano de imânencia, o plano de Natureza que distribui os afetos, não separa absolutamente coisas que seriam ditas naturais e coisas que seriam ditas artificiais. O artifício faz parte completamente da Natureza, já que toda coisa, no plano imanente da Natureza, define-se pelos agenciamentos de movimentos e de afetos nos quais ela entra, quer esses agenciamentos sejam artificiais ou naturais.